domingo, 23 de janeiro de 2011

Isopor queimado, fita regravada

Mesa decorada com babados de papel crepom, sobre a qual enfeites de isopor repousavam. Minha mãe tinha uma pistola com um fio quente preso na ponta. Quando ligada na tomada, era responsável pelo corte preciso nas lembrancinhas de aniversário que minha mãe produzia para as festas de seus dois filhos. Ela fazia séries de desenhos numa cartolina, colava-a sobre uma folha de isopor e então a pistola quente entrava.

Eu me lembro do cheiro do isopor queimado. E dos peixinhos e corações que minha mãe fazia com a sobra do isopor. Lembro ainda da ponta da caneta Bic afundando nas bolinhas do isopor, enquanto eu tentava dar rostos aos peixes. Minhas mãos de criança não eram tão delicadas quanto as de minha mãe. Com isopor, glitter, crepom e seu par de mãos feias, minha mãe produziu festas no melhor estilo anos 90. Eram painéis, enfeites, bolos e lembranças da Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, Bozo, Barbie e seleção brasileira.

A morte de uma memória

Abre o pano. A rainha Hécuba está no palco arrasada diante das ruínas de Tróia, destruída pelos gregos. Isso me arrasa também, pois da platéia lembro-me de eu menino, com 5 anos de idade, quando minha mãe me levou no Tivoly Park. Quando estava no cavalinho um fotógrafo bonachão com barba e bigode fratos e brancos parecendo um Papai Noel gostou de mim e tirou uma foto minha. Qual o adulto que não se apaixona por um garotinho rechonchudinho, gordinho e carismático? Só que minha mãe não tinha dinheiro para pagar a foto. E infelizmente fui embora para casa sem aquela memória maravilhosa de um inesquecível momento de minha vida.

Volto a platéia do teatro e vejo Hécuba tomar uma porrada atrá da outra através das notícias do mensageiro. A filha Policena que terá de ser sacrificada no túmulo de Aquiles; a outra filha louca Cassandra que terá de ser sacrificada em honra ao deus Apolo, o netinho recém-nascido, filho de Heitor que será atirado do alto das muralhas de Tróia para não correr o risco de crescer e vingar os seus e a coitada não pode fazer nada. Eu também não pude fazer nada pelos textos infantis que escrevi ainda menino das minhas aventuras no Sítio do Picapau Amarelo onde eu aprontava mil e umas com a Emília, o Pedrinho, a Narizinho e o Visconde de Sabugosa. Eu escrevia tudo num caderno inspirado no programa que mais mexia com a minha cabeça. Mas o caderno se perdeu na poeira do tempo.

Volto novamente à platéia do teatro e vejo Hécuba se lamentar com Zeus de seu infeliz infortúnio e seguir cativa dos gregos. Fecha o pano. Fim do espetáculo.

Vou ao camarim cumprimentar a atriz e qual é o seu assombro quando digo a ela:

- Liga não, Hécubinha. Isso já aconteceu comigo também.
(Marcio Rufino)

Aula 6: O dispositivo

Usei dois episódios recentes para estimular complexo diálogo com a memória contemporânea: Surto psicótico de uma amiga e catástrofe da serra. Acho que os escritores devem ser alimentados pelos acontecimentos cotidianos, mas uma nova literatura que se remete ao território seria abalada com os dois episódios em questão.

Vivemos uma época em que nossa memória pode ser formatada a qualquer momento, seja por um cataclismo ambiental ou pela pura falta de espaço no HD ou pela falência de uma empresa como a GeoCities, que armazenou o grosso da memória virtual dos primórdios da internet.
(Julio Ludemir)

Fazedoras de filhos fracassadas

Kátia estava triste a passar roupa. Pensava na vida como que pisasse em cacos de vidro e fosse obrigada a engolir a seco o choro de dor. Sua fome de vida estava lhe trazendo conseqüências desagradáveis, dolorosas. Mãe de três filhos, cada um de um relacionamento diferente, e já grávida do quarto - após várias aventuras amorosas - voltava a viver sob as hospitalidades da amiga Noêmia que já havia a acolhido antes na gravidez do primeiro filho em sua casa na rua Aguapeí, no bairro Piam, em Belford Roxo. Kátia tinha sido sempre muito afoita em tudo. Muitos homens entre adolescentes, rapazes e até mesmo alguns senhores casados de todas as cores, idade, peso e altura já tinham sentido na pele do corpo inteiro sua ânsia por prazer intenso em fugidas, pegações, ficadas, noitadas e orgias entre uma batida de funk e uma roda de pagode; entre um copo de cerveja e um cálice de vinho; entre um e outro tapinha num cigarrinho de maconha. Mas como tudo tem seu preço quando o cuidado não faz parte da rotina de um ser-humano, ela agora esta ali... Sem trabalho, sem homem. Respirando o que não queria; comendo o que não queria; ouvindo o que não queria.