Eu passava dias seguidos como acompanhante de minha avó. A tarefa exigia que a alimentasse e auxiliasse os enfermeiros nos procedimentos de higiene. Mais que isso, exigia que eu acompanhasse minha avó definhar sobre uma cama. Exigia que eu assistisse a insanidade que se alocava em sua mente. Me fazia perder de vista a pepita de ouro que ela exibia nos dentes quando ainda abria seu maravilhoso e característico sorriso. Com ele também se ausentavam as covinhas que se formavam em suas bochechas e os tantos almoços em família que por ela foram embelezados. Mas minha avó não percebia nenhuma ausência. Até pessoas mortas eram invocadas por ela durante as madrugadas.
Para a minha avó, o remédio contra a dor daquela situação era o esquecimento. o meu era o "glamour de Copacabana" e os R$20 diários, dos quais eu nunca havia tido posse. O esquecimento de minha avó e o "estar imaginário" em Belford Roxo me colocavam em situações surreais. Ela sempre insistia no frango assado do farrula. O proibido frango assado responsável pelos esporros da "pele do frango" que minha avó levava da minha mãe. Na mesa do almoço da minha família, em dia de frango assado, era de lei minha avó pedir a pele e o cu do frango. Eram prioridades. Minha mãe impunha um "pele não pode". Em Copacabana, no São Lucas, éramos só eu e minha avó. E ela insistia no frango assado do Farrula. Dizer que não estávamos em Belford Roxo não adiantava mais. Eu era chamada de mentirosa e acusada de má-vontade. Então eu omitia os R$20 e dizia: "Não tem dinheiro, vó". "Pega na gaveta", dizia ela, se referindo ao criado-mudo de madeira, ao lado da cama de casal que dividia com meu avô. "Já olhei. Não tem nada, vó". "Pede pra Dodó". Dodó era a Tia Judith, mora na esquina oposta a minha casa. "Ela não está em casa, vó". "Você é uma imprestável", choramingava a vó.
A falta do frango devia ser mais dolorosa em sua percepção do que o próprio câncer. O frango a fazia choramingar. O câncer tinha o poder de passar invisível por sua consciência.
(Josy Antunes)
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